Entregues à bicharada

Há dias fui interpelada por um vizinho – coisas da minha recente vida no campo – que me veio bater a porta, a pretexto de uma obra que estão a começar aqui ao lado.
- “Está a fazer o almocinho, vizinha? É só para avisar que ao remexer na terra para fazer o muro, encontrámos duas cobras grandes. É melhor precaver-se e manter as portas fechadas”.
As minhas antigas fobias reapareceram sob a forma de suores frios e tremeliques. Passado o susto inicial – e confirmando todas as portas e janelas da casa – fui assaltada por um pensamento: porquê ter medo de um animal que nunca me fez mal nenhum, quando eu, já tive de enfrentar tantas outras cobras da vida, que se apresentam sob as mais variadas formas e feitios?



O mundo de hoje parece uma selva em que a teoria de Darwin impera: competição e seleção. Sobrevivência dos ‘melhores’ – ou dos que se conseguem aguentar à bomboca, mesmo que, muitas vezes, a custo da sanidade mental. Medo de animais? Tem piada! Somos nós, os ditos humanos, que nos comportamos como animais ferozes com garras afiadas, mostrando que somos melhores do que este, ou que trabalhamos mais do que o outro. A justificação é a crise, não há emprego, há que aguentar. Cá se vai andando com a cabeça entre as orelhas, já dizia a canção.

As cobras erguem-se quando alimentamos quezílias e cochichos. Quando marcamos território só por uma questão de ego. Quando discriminamos quem está mesmo ali ao lado, só porque sim. Quando julgamos aquela mulher que veio vestida assim e tem o cabelo assado. Será ela mais ou menos competente porque veio de sapatilhas em vez de salto alto?

Que monstros são estes que nos movem, nos dias que correm? Que nos afastam da nossa essência, do que realmente interessa? A selvajaria existe sim, mas no meio do mato não é tão grave. Por lá, o ecossistema regula-se e a natureza assume o seu papel. Por cá, o dia a dia frenético acalenta a ilusão de que um salário e um estatuto são escadas no patamar da salvação ou, quem sabe, promessas de vida eterna.

Estaremos entregues à bicharada? Pela minha parte, espero que não. Vou continuar a enfrentar os meus medos, nem que seja a espreitar, de vez em quando, umas cobras nos documentários da BBC vida selvagem.

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