Um exercício de memória coletiva – Marta

Numa conversa com a minha irmã, veio à baila, o aspeto curioso de a nossa mãe não gostar de caracóis. Não me refiro a não apreciar a iguaria gastronómica – há quem adore! - mas ao facto de ela ter uma relação negativa com os animais que se caracterizam pela lentidão do seu movimento. Na verdade, ela tinha pânico de caracóis: sempre que se cruzava com algum, o seu corpo tremelicava e tinha de fechar os olhos para prosseguir o caminho.
Somos todos especiais e únicos, não havendo um ser humano igual a outro. Esta lembrança de uma característica tão peculiar da Marta, despoletou o desejo de desvendar mais coisas sobre a pessoa que foi a nossa mãe. Tantos anos volvidos, a memória teima em fraquejar e, por isso, decidimos pôr em ação um desafio que envolveu algumas pessoas que fizeram parte do universo dela.

Figura que contém elementos relacionados com a vida da Marta
Autoria: Daniela Vieira

Decidimos criar um produto que juntasse palavras (Celeste) e ilustrações (Daniela), resultante da entrega e do amor que dedicamos à nossa mãe.
Convidámos familiares, amigos e conhecidos a darem o seu testemunho sobre a Marta e acerca das coisas que se lembram que ela gostava ou não gostava. Esta tarefa também nos permitiu confirmar que ela permanece viva, nos corações dos demais. Tivemos a intenção de manter este exercício na tónica da simplicidade, por acreditarmos que as coisas simples são, de facto, as melhores.
Esperamos que gostem de (re) conhecer uma mulher, incrível, a quem deixamos, desta forma, a nossa homenagem. 
A todos/as os que contribuíram para este exercício, o nosso agradecimento.

Celeste e Daniela

Figura que contém elementos relacionados com a vida da Marta
Autoria: Daniela Vieira

Marta Teresa Barrios de Vieira [14.03.1948 – 10.01.1997]

  1. Nasceu em Altamirano Sud, Entre Rios (Argentina) com um imenso cabelo negro, tendo ocorrido o parto num posto médico, devido a algumas complicações, numa altura em que era mais comum dar-se à luz em casa. A irmã mais velha (dos 13, no total) ficou incumbida de, diariamente, levar e trazer (e lavar!) as fraldas de pano nos primeiros dias da sua vida.
  2. Cresceu no campo junto de uma numerosa (e disfuncional) família. Adorava a natureza, as plantas e beber leite diretamente das tetas das vacas. Costumava dizer que era muito aconchegante, aquela bebida quentinha, embora o sabor fosse algo peculiar.
  3. Também gostava de andar à cavalo, mesmo que isso tivesse representado uma valente queda, na qual perdeu alguns dentes. Anos mais tarde, usou dentadura postiça e aprendeu a fazer desse desgosto, uma brincadeira. De vez em quando, as suas filhas pediam-lhe, em casa, para encarnar a “bruxa”, revelando-se um pouco desdentada, completamente despida de preconceitos. Um momento hilariante!
  4. Tinha gosto pela escola e por tudo o que envolvia aprendizagem, embora não tivesse tido oportunidade de prosseguir uma formação superior. Pedia os livros emprestados aos seus colegas para poder transcrevê-los à luz das velas e era assim que estudava. O seu pai, António, influenciou-a positivamente nesse sentido, fazendo-lhe ditados e correções para que pudesse evoluir.
  5. O dom da escrita esteve presente ao longo de toda a sua vida, tendo escrito poemas, diários e pequenos textos. Expressava-se, genialmente, através das palavras e revelou-se uma comunicadora nata, apesar de não ter desenvolvido a sua vocação enquanto escritora.
  6. Gostava de saltar em cima das camas e ficar longas horas à conversa com a prima, nos tempos de adolescência. Quando os pais lhe permitiam ir aos bailes da época, ela chamava a atenção pela sua elegância e belo porte, tendo tido alguns pretendentes.
  7. A música era uma das suas paixões: cantava e dançava, alegremente, no apartamento que partilhava com os irmãos em Buenos Aires, nos tempos de juventude.
  8. Sendo super fã do cantor Sandro, foi a muitos concertos deste artista nos anos 70, entre os quais, no estádio de Lanús e no de San Lorenzo, em Buenos Aires, Argentina. Numa dessas situações, conheceu o Hugo, o amor da sua vida e pai das suas filhas.
  9. Vestia-se impecavelmente, com as suas camisas bem passadas a ferro e usava todo o tipo de acessórios (colares, pulseiras, brincos), denotando um distinto gosto na sua aparência física. Operava um milagre com qualquer “trapinho”, desde que fosse bem combinado, o que ela sabia fazer como ninguém.
  10. Além de se vestir bem, gostava de ajudar quem a rodeava e havia quem lhe pedisse conselhos de moda! Uma curiosidade interessante foi o facto de ter emprestado o seu vestido de noiva à sua melhor amiga, na impossibilidade de esta poder comprar o próprio, para que ela pudesse ter uma boda especial.
  11. Delicada, era apreciadora dos pequenos pormenores. Tinha cuidado consigo e com os outros, tendo ajudado várias pessoas, de forma autêntica. Estava-lhe no sangue ser generosa e altruísta, contribuindo com soluções a partir de uma bondade fora de série.
  12. Sempre foi muito trabalhadora e competente, na juventude foi operária numa fábrica de chocolates chamada “Águila”. Em todos os locais onde trabalhou, revelou profissionalismo e brio, mesmo em tarefas menos agradáveis (como lavar casas de banho de um restaurante em Portugal). Detestava injustiças e distinguia-se pela dignidade como lutava pelas causas e direitos laborais.
  13. Apreciava ter as contas em dia e revelou-se uma pessoa organizada e honesta. Empreendedora, enfrentava, com bravura e criatividade, novos desafios que a pudessem fazer viver melhor.
  14. Amava a casa, o lar e o ato de manter tudo impecavelmente arrumado e limpo no seu ambiente. Volta e meia, gostava de mudar os móveis de lugar, engendrar novas formas de organizar as tralhas, ao som das canções de Celine Dion. Havia sempre disponibilidade para fazer uma limpeza geral e detestava alcatifas (típicas dos apartamentos dos anos 80) por acumularem tantos ácaros.
  15. Ela não gostava das suas sardas e do seu nariz e detestava o segundo nome: Teresa. A sua cor preferida era o amarelo.
  16. As plantas constituíam os seus rebentos, a quem dedicava uma verdadeira devoção. Falava com elas e sabia, exatamente, como estes seres se sentiam, a cada momento. A sua flor preferida era a gerbera, a qual utilizava, com frequência, nos centros de mesa, pois dominava a arte dos arranjos florais, tanto em casa como no restaurante onde trabalhou durante vários anos. De facto, com ela nada murchava, tudo crescia e florescia, magicamente.
  17. Por falar em magia, a Marta era muito sensível e intuitiva, como um típico nativo de Peixes. Dava valor aos símbolos, rituais e superstições. “Ai” de quem deixasse um chinelo do avesso ou tivesse a ousadia de abrir um guarda-chuva dentro de casa! Gostava de cortar o cabelo perto do Domingo de Ramos, pois ela acreditava ajudava a fortalecer as raízes.
  18. O símbolo de sorte que ela mais apreciava era o trevo de 4 folhas. Chegou a mandar fazer um bolo para o aniversário de 13 anos da sua filha Celeste com o formato de um trevo.
  19. Dotada de um sentido de humor particular, satirizava, juntamente com os irmãos, os episódios familiares menos alegres. Tinha uma gargalhada contagiante e amava os momentos de socialização em que podia rir, conversar durante horas e horas e comer…
  20. Comer era um dos seus maiores prazeres e devia ter um pacto com o Diabo, pois comia que se fartava, mas estava sempre elegante. Gostava de experimentar novos sabores e adaptou-se com muita curiosidade aos sabores mediterrânicos quando se mudou para Portugal. Comia de tudo um pouco, não sendo nada esquisita, mas apreciava bastante o pate de fígado, a banana split, a Seven up, os gelados Vienneta e Rol. Em alturas de festa, sabia-lhe bem saborear um pouco de champanhe/espumante ou fumar um cigarro para descomprimir (“SG light”).
  21. Em Portugal não era costume, nos anos 90, comer-se espigas de milho e, de vez em quando, nas suas caminhadas, aproveitava para roubar umas quantas que encontrava em terrenos cultivados. Deliciava-se com a Celeste e a Daniela, uns momentos de felicidade, pura e simples.
  22. Não admitia que se deixasse comida no prato e era muito exigente quanto a isso, sobretudo com a sua filha Daniela que era considerada um “pisco”. Também estava sempre atenta às dicas de nutrição e vida saudável no crescimento das suas filhas.
  23. Além de comer, gostava de cozinhar e, sobretudo, de cuidar. Em qualquer ocasião, preparava um bolo ou uns biscoitos para receber familiares e amigos, acompanhado com um mate, a sua bebida de eleição. Esse vício, em Portugal, acabou por ser substituído pelo café, o qual bebia, sempre a escaldar!
  24. Não tinha carta de condução e passava grande parte da sua rotina a caminhar de um lado para o outro, de casa para o trabalho, para a escola das filhas ou para fazer compras. Muito ativa, marcava presença em todos os momentos significativos dos seus entes queridos, não esquecendo os gestos de carinho.
  25. A família tinha um lugar prioritário na sua vida. Muito maternal, mesmo antes de ser mãe, cuidava, com toda a dedicação, dos irmãos mais novos, dos sobrinhos e dos filhos de amigos, presenteando-os com chocolates e pequenos mimos da infância.
  26. Viver longe da sua família/amigos constituiu um enorme desafio na sua vida, acabando por falecer, 10 anos depois, sem nunca ter voltado ao seu país. Mostrava-se muito orgulhosa da Argentina, das personalidades célebres e dos valores culturais que lhe estavam no sangue. Numa altura em que não havia Internet, esforçou-se por manter o contacto com os seus entes queridos, através de cartas e uns poucos telefonemas.
  27. A Marta tinha uma personalidade forte. Frontal como ninguém, não deixava nada por dizer. Demasiado sensível e impulsiva, chegava a ser um bocado dramática e, em algumas fases, depressiva, por circunstâncias do próprio caminho. Não tolerava faltas de educação ou mentiras.
  28. Amava a praia e o mar, embora não soubesse nadar. Não gostava de barcos e tinha medo de andar de carro em dias de nevoeiro.
  29. O seu maior tesouro eram as suas filhas, Celeste e Daniela. Ensinou-lhes tudo sobre o amor, a honestidade e a independência. E deixou-lhes a saudade…


“Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós”.

 

[In “O Principezinho”, Antoine de Saint-Exupéry]


Nota: Consultar em español aqui.

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