A arte faz de nós melhores pessoas?


[Reflexão sobre a peça de teatro “A Margem do Tempo”] *


Gostava de pensar numa realidade normal, a do regresso definitivo da arte (e dos espetáculos) como forma de nos tornar melhores pessoas, pois o enclausuramento poderá tornar-nos mais ressentidos, agressivos ou tristes, fazer o contrário do que almejamos para nós. A arte significa reflexão sobre a ação, pois uma pintura, uma canção, uma peça de teatro, uma exposição, uma instalação, um mural de rua, entre outras milhentas expressões artísticas, proporcionam experiências estéticas que revigoram o pensamento e quero crer que talvez possam melhorar a nossa relação com os outros.

Ter visto no dia 21/05/2021 a peça “A margem do tempo” no convento de São Francisco em Coimbra com Eunice Munoz e a neta, foi um momento alto de 2021. Esta é uma peça que proporciona múltiplas leituras, contribui também para reforçar alguns dos assuntos que têm sido alvo de estudos no âmbito do envelhecimento. Após o espetáculo debatemos as interpretações de cada uma, se para algumas a peça retrata uma certa vida a duas pessoas de quase indiferença e pouco contacto humano, enfim, há pessoas que se tornam invisíveis dentro de determinadas casas, os velhos são por vezes encarados como fardos e a forma de se tornarem suportáveis é torná-los seres invisíveis, espetadores passivos da vida ativa de uma casa. Por outro lado, remete para uma certa reflexão que poderá ser importante na velhice. Será que tudo o que eu vivi fez sentido? Será que poderia ter vivido de outra forma? Será que a minha vida poderia ter sido melhor? Ou até um sentimento de pacificação perante a vida, dado que está connosco uma sensação de que a vida foi o que melhor conseguimos fazer dela, resultando isso numa sensação de estar em paz consigo, podendo, por isso, morrer em paz.
A arte por nos proporcionar interpretação, debate e reflexão poderá fazer de nós melhores pessoas.
(Vera Carvalho)



A peça “A margem do tempo” é, para mim, um exercício de silêncio – um silêncio tagarela, sem dúvida! O seu formato particular – ausência de falas das personagens – demanda uma outra atitude por parte do público. Desta vez, não somos apenas espetadores, recetivos a um produto artístico de alto nível, mas somos convidados a ser cocriadores da história que está a ser contada. É inevitável que cada um de nós fique indiferente ao exercício de (des)construção. No meu caso, tive várias viagens durante aquela peça, fui elaborando teorias dentro da minha cabeça e tinha de resistir à tentação de confirmar com outras pessoas se o que eu estava a pensar seria o correto. Na prática, neste texto, não há certos ou errados - todas as interpretações são possíveis e isso em si mesmo é uma lição para a nossa própria vida.
Uma das teorias passíveis é a de alguém que, no final da sua vida, olha para trás e através da memória vai vivendo, repetindo ou alterando comportamentos. Como cada um de nós olhará para si mesmo no final da vida? Que olhar gostaria eu de ter sobre mim mesma daqui a 40/50 anos? Será que me vou lembrar de tudo o que vivencio agora? Será que vou manter os mesmos traços de personalidade? Poderei dizer que tive uma vida feliz?

Uma experiência única, até pelo facto de podermos assistir ao desempenho do monstro da representação com a bela idade de 92 anos – a maravilhosa Eunice Muñoz.

Concordo, em absoluto, querida Vera. A arte faz de nós seres humanos, um pouco mais humanos...!

(Celeste Vieira)

*Agradeço à Vera Carvalho por ter aceite este desafio de reflexão conjunta.

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