O pássaro voa porque o deixam ser pássaro


Quando era miúda, volta e meia, pedíamos aos nossos pais para termos um animal de estimação. Todas as crianças fazem isso, creio eu. No nosso caso era um bocadinho complicado, pois vivíamos num apartamento e, por isso, a minha mãe era bastante reticente quanto a animais de companhia do tipo cães e gatos. Os pássaros eram uma opção mais pacífica, pensavam eles.

Recordo-me de alguns passarinhos que viveram lá em casa, mas nunca foram residentes de longa duração. Houve um que a minha irmã insistiu em tratar-lhe da higiene e deu-lhe, literalmente, um banho de espuma com direito a champô de camomila para dar brilho às penas. Houve outro que também teve um final trágico porque eu resolvi libertá-lo da sua gaiola quando os nossos pais não estavam em casa. O meu intuito era oferecer-lhe alguns momentos de liberdade que consistiam em voar pela casa, cheia de móveis - correu mal! Pensando nisto agora, era um total paradoxo: ao mesmo tempo que desejava ter um animal, sofria muito ao ver um ser vivo preso – a verdade é que ainda sofro e já tive algumas vivências que me instigaram a lutar pelas injustiças de um modo algo irreverente.


Hoje assisti a uma verdadeira cena cintilante, daquelas pequenas magias que nos acontecem quando menos esperamos. Ao voltar de uma caminhada, a minha mirada (mais) presente conduziu-me para a visão de um passarinho à beira da estrada, minúsculo… lindo! Poderia jurar que era um recém-nascido, dava para perceber pelo seu olhar atarantado como observava este mundo maluco - ainda mais na sua perspetiva rasa e com alguém como eu a tentar captar a sua imagem. Por instantes, tive a tentação de o agarrar e trazê-lo para casa… tão desprotegido me pareceu. Queria protegê-lo. Mas a sua hesitação natural fez-me ver o que faz todo o sentido: ele não pode negar a sua essência. Precisa de enfrentar o solo e os possíveis predadores pela primeira vez, longe da sua mãe. Tem de começar a experimentar as suas asas para fazer aquilo para que foi criado: voar.

Essa certeza de nos mantermos fiéis ao nosso propósito – por mais duro que seja o caminho – fez-me voltar para casa, sem remorsos e com um orgulho no peito. Sê livre, passarinho, e voa, voa, muito!

Uma metáfora para os dias que correm, em que tantas vezes não nos permitimos gozar da liberdade de sermos o que somos, simplesmente. E sermos felizes é viver em conexão com a matriz da nossa essência – por mais medos que tenhamos de enfrentar.

“Não é segurando as asas que se ajuda um pássaro a voar. O pássaro voa simplesmente porque o deixam ser pássaro”

(Mia Couto)


Texto en Espanol


El pájaro vuela porque lo dejan ser pájaro

Cuando era niña, a menudo les pedíamos a nuestros padres una mascota. Todos los niños hacen eso, creo. En nuestro caso, era un poco complicado, porque vivíamos en un departamento mi mamá era muy reticente con las mascotas como perros y gatos. Los pájaros eran una opción más pacífica, pensaron ellos.

Recuerdo algunas aves que vivíeron en casa, pero nunca fueron residentes a largo plazo. Hubo una en la que mi hermana insistió en cuidar su higiene y literalmente le dio un baño de burbujas con champú de manzanilla para dar brillo a las plumas. Hubo otro que también tuvo un final trágico porque decidí sacarlo de su jaula cuando nuestros padres no estaban en casa. Mi intención era ofrecerle unos momentos de libertad que consistían en volar por la casa, llena de muebles. Pensando en eso ahora, era una paradoja total: al mismo tiempo que quería tener un animal, sufrí mucho cuando vi a un ser vivo atrapado - la verdad es que todavía sufro y ya tuve algunas experiencias que instigaron a luchar por las injusticias de una manera un tanto irreverente.

Hoy vi una escena realmente chispeante, esas pequenas magias que nos suceden cuando menos lo esperamos. Al regresar de un paseo, mi mirada me llevó a la vista de un pajarito al costado del camino ... ¡hermoso! Podería haber jurado que era un recién nacido, podía decir por sus ojos aturdidos cómo estaba observando este mundo loco, especialmente en su perspectiva superficial y con alguien como yo tratando de capturar su imagen. Por un momento, tuve la tentación de agarrarlo y llevarlo a casa ... parecía tan desprotegido. Quería protegerlo. Pero su vacilación natural me hizo ver lo que tiene perfecto sentido: no puede negar su esencia. Necesita enfrentar el suelo y a los posibles predadores por primera vez, lejos de su madre. Tiene que empezar a probar sus alas para aquello para lo que fue creado: volar.

Esta certeza de permanecer fiel a nuestro propósito, por duro que sea el camino, me hizo volver a casa, sin remordimientos y con orgullo en el pecho. ¡Sé libre, pajarito y vuela, vuela, mucho!

Una metáfora de estos días, cuando tantas veces no nos permitimos disfrutar de la libertad de ser lo que somos, simplemente. Y ser feliz es vivir en conexión con la matriz de nuestra esencia, no importa cuántos miedos tengamos que enfrentar.


“No es sosteniendo las alas que se ayuda a un pájaro a volar. El pájaro vuela simplemente porque lo dejan ser un pájaro "

(Mia Couto)

Comentários

Mensagens populares